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Perdido em Israel - Trecho 18

Mensagens saudosas e um monte de estrume. Minha mãe, sobrevivente da guerra que resultara na partilha da Palestina, dava-me notícias triviais, conselhos que mães judias sempre oferecem e cobria-me de perguntas sobre o dia a dia em Israel. Tinha uma letra redonda e acolhedora que só os filhos compreendem e nunca deixava de me incentivar. Guardei todas elas e, em correspondência, enviei-lhe também uma espécie de diário da jornada, com os mínimos detalhes (é o que ela me pedia) factuais e emocionais. Andei vasculhando alguns baús e não encontrei nenhum dos volumosos manuscritos de minha estada. Seria ótimo reproduzir algumas delas (creio que foram mais de oitenta as que enviei e a mesma quantidade que recebi). Foi ali, de novo, que intui o jornalista e escritor que seria pelo resto da vida -, mas nunca o migrante que alguns sonharam, um refugiado sem vontade, longe do país em que nascera e onde nunca sentira (até então) o antissemitismo que assolou grande parte do mundo por séculos e sécu...

Perdido em Israel - Trecho 17

A operação era muito mais lenta do que eu supunha, mas, ainda na primeira noite, comecei a me proteger de um jeito nada agradável para os galináceos. Quando elas cismavam em me atacar, eu as chacoalhava para baixo, com mais força conforme à da ave. Muitas vezes destroncava suas pernas e, inúteis, elas ficavam penduradas pela própria pele. Quando o sol raiou, acho que tinha conseguido transferir cerca de quarenta animais, mas, infelizmente, uma parte deles ficou com as pernas e coxas danificadas pela força de meus puxões. Os infelizes iriam direto à cozinha comunal para cocção imediata e consumo no próprio dia. Meu último dever nas noites de mudança forçada das galinhas, era apanhar recipientes de papelão e instalar, dentro de cada um deles, a produção da noite. Eram, se não me engano, quatro caixas com uma dúzia de ovos grandes cada, que eu precisava conduzir ao refeitório, tropeçando e equilibrando as caixas. Nem preciso dizer que perdia vários ovos pelo caminho, já que meus braços, f...

Perdido em Israel - Trecho 16

Minha tarefa, pelo tempo que levasse, era recolher as aves do velho para o novo galinheiro. Fui treinado imediatamente. Eu deveria me dirigir, após o jantar, para o cativeiro em ruínas, apanhar quatro galinhas ao mesmo tempo numa única mão (a outra era destinada a movimentos defensivos), percorrer os 200 ou 300 metros de distância até a nova instalação e abrigar as poedeiras nas gaiolas novas. Quatro era o número de cada movimentação, garantindo a produtividade esperada pela assembleia geral do kibutz. Parecia ser, de fato, outro trabalho leve, embora, como já expliquei, as temperaturas chegavam a ser negativas durante a noite. Não me lembro de contar com nenhum equipamento especial, exceto um par de luvas de couro, que se mostraram fundamentais. O sítio de meu pai no interior de São Paulo tinha seu próprio galinheiro de dimensões diminutas, nunca tive nada contras as aves que viviam ciscando no terreiro, e a nova incumbência não devia me incomodar. Também me advertiram de que o trabal...

Perdido em Israel - Trecho 15

O cemitério de bolas O tema das minas, aliás era recorrente naquele território esfacelado e em litígio permanente. Nosso kibutz, por exemplo, situava-se a cerca de quinhentos metros de distância de um vilarejo de Tulkarem, já em território palestino, segundo as fronteiras da época. Não me lembro de qualquer hostilidade ocorrida naquela minha temporada, mas hoje acho poética a lembrança que tenho de um campo cheio de bolas (bolas mesmo: de futebol, vôlei e basquete) que ficava atrás de um alambrado, limite superior da comunidade, bem em frente a pequena cidade palestina. Nos finais de tarde costumávamos usar essa área de lazer, em peladas entre jogadores com algum talento e outros com nenhuma. Era raro, mesmo para os pernas-de-pau, mas uma ou duas vezes naquela temporada, as bolas escaparam por cima da cerca alta, rumo a campo verde e intensamente minado. Não era, nunca, portanto, um até logo, mas um adeus definitivo à pelota, vítima inocente daquele turbilhão político e militar que, at...

Perdido em Israel - Trecho 14

Também visitamos, mais de uma vez, o kibutz Bror Chail, fundado por egípcios em 1947 mas depois colonizado por brasileiros, centenas deles. Metade dos que chegaram conosco ao aeroporto de Lod foi encaminhada para essa comunidade brasileira, na cidade de Siderot, bem próxima ao que hoje é a faixa de Gaza. Os demais, por escolha que presumo aleatória, acabaram no kibutz onde eu lavava pratos, chamado Bahan, a vinte quilômetros de distância de Netanya, cidade à beira do Mediterrâneo. Como era possível que viajássemos tanto em apenas um dia sem trabalho? Quem não souber a resposta para essa questão, precisa ir à Israel, um país tão pequeno que, segundo uma piada local, qualquer visitante conhece por inteiro (exceto pelos desertos) na metade de um único dia. É, claro, um exagero da anedota, mas o fato é que, ainda hoje, o território dito israelense, ocupa apenas 0,4% do território árabe muçulmano que o cerca em todas as latitudes. Aprendi muito nessas incursões e tive o momento mais sublime...

Perdido em Israel - Trecho 13

O Shabat, de que lhes falava, é (ou era) um dia tão sagrado para os judeus, que a maioria deles sequer cozinha ou costura nas vinte e quatro horas entre o pôr do sol da sexta feira e o do sábado. Não há ônibus nas ruas de Israel, as lojas ficam fechadas (exceto às de muçulmanos e cristãos cujos dias de descanso são, respectivamente, as sextas e os domingos). Não se trabalha sequer nos kibutzim. Serviços essenciais eram executados por árabes ou cristãos contratados. Alguém me pergunta como é que os moradores do kibutz comiam aos sábados. Questão curiosa e pertinente. Suponho que muitos deles, nem um pouco religiosos, cozinhavam suas próprias refeições com itens adquiridos no empório local. Ou talvez houvesse algum tipo de esforço extra antes do shabat, para garantir alguns tipos de alimento no refeitório. A primeira hipótese, hoje, me parece mais provável. Naqueles tempos, as crianças pequenas viviam numa espécie de internato com cuidados profissionais dentro da própria instituição. Est...

Perdido em Israel - Trecho 12

Pelo mesmo canal vinha o noticiário negativo, dando conta da morte de vários compatriotas em emboscadas nas fronteiras hostis. Frequentemente, após dois ou três copos de vinho, os circunstantes levantavam-se para cantar o hino nacional de Israel e algumas tristes canções em iídiche, o estranho idioma que nasceu durante a diáspora – um mix de alemão, línguas eslavas, lembranças do antigo hebraico e outras influências, que anos mais tarde, produziria o único prêmio Nobel de Literatura para Isaac Bashevis Singer, cuja obra foi toda escrita nesse idioma peculiar. Mesmo um humilde lavador de pratos como eu me contaminava pelas emoções que vazavam do refeitório. Afinal era gente muito feliz ou infeliz exprimindo o que pensava ou sonhava. Na sexta-feira, depois dos serviços de Shabat , que anunciam a chegada do dia de descanso, sempre havia alguma atividade especial. Um pianista lituano que tocava amargas lembranças de sua terra natal, um general que explicava, com honestidade sem censura, os...

Perdido em Israel - Trecho 11

Descobri, naquele mesmo dia, que era minha obrigação fazer o mesmo tipo de trabalho no desjejum, no almoço e no jantar, totalizando cerca de oito ou nove horas diárias de expediente. Justo. Aos poucos fui me acostumando aos rostos e atitudes dos homens e mulheres que levavam adiante a tarefa de tornar viável (e lucrativo para o país) o tal kibutz, um dos muitos em que se baseava a economia do país daqueles tempos e que ainda existem, cerca de 230 deles, muitos dos quais transformados em prósperas indústrias. Entendi que era verdade tudo o que me disseram antes de sair do Brasil. Meus “fregueses” eram de colossal diversidade. Médicos, químicos e escritores que erguiam cercas de arame e muros de tijolo lado a lado com gente simples sem formação alguma, sobreviventes da 2ª Guerra com os olhos ainda tristes, soldados (muitos deles) e jovens visitantes como eu mesmo. Confesso, outra vez, que não tive maturidade para perceber o heroísmo e a entrega daquela gente. Israel continuava a ser, par...

Perdido em Israel - Trecho 9

Pausa para um pequeno repouso e ajustar as ideias. (trechos - 9 e 10) Próximo - trecho 11

Perdido em Israel - Trecho 8

Não se passaram quinze minutos, porém, antes que alguém me levasse ao diretor em exercício da comunidade. Ele devia ter uns trinta anos e, lembro-me, usava trajes militares. Na verdade, essas comunidades, talvez a única experiência comunista que deu certo ao longo da história, porque revestida de um idealismo do qual pessoas normais não comungam são comandas por uma Assembleia Geral tipicamente soviética. O líder temporário eleito em alguma dessas reuniões levava o nome de Camarada Secretário Geral. Acho que o tal chefe a quem fui encaminhado era algum diretor de produção do kibutz, também camarada, mas em outra função. De novo em castelhano e com o relato da doutora em mãos ele anunciou um trabalho substituto: o de lavador de pratos no refeitório do kibutz. Como a hora do almoço estivesse próxima, o chefe me encaminhou imediatamente para o local, uma espécie de centro social da comunidade. Alguém de quem nada me lembro, deu-me um avental de lona, luvas plásticas que iam até os cotovel...

Perdido em Israel - Trecho 7

Como meu país fosse o Brasil, meus amigos fossem brasileiros, e o time de futebol pelo qual era apaixonado também disputava títulos no Brasil, Israel era apenas uma imagem vaga – nunca a sólida esperança daqueles que beijaram o chão do pátio de aviões do aeroporto de Lod. Aos poucos, fui me acostumando àquela rotina e cheguei a desfrutar mesmo de algum prazer ao retornar à sede, vendo a tarde cair, o frio voltar - e gratificado pela sensação de missão cumprida. Passava-me pela cabeça como eram lindas as terras que me preparei para ver secas e pedregosas. Por fim, o refeitório comunitário sempre tinha, para os retornados – catadores de laranja, coletores de batatas, pessoal dos currais e dos imensos galinheiros coletivos – algo para se comer avidamente depois de longa jornada laboriosa. Lembro-me em especial das jarras de laranjada, que cheguei a provar e eram muito mais adstringentes do que as que que ingeri aqui no Brasil. Fato é que, após vinte dias de trabalho na plantação daque...

Perdido em Israel - Trecho 6

Depois vinha o trabalho para valer, rude e, como tudo no kibutz, repleto de normas. Éramos proibidos, por exemplo, de iniciar a colheita da próxima árvore da interminável fileira, caso deixássemos uma única laranja abandonada, no mais remoto recanto da copa, espessa e com algo entre seis e oito metros de altura. Hora de recorrer à escalada, esgueirando-se, o quanto possível, dos galhos repletos de espinhos. Mesmo com experiência, nenhum coletor seria capaz de vencer a árvore sem cortes e lanhuras, constatadas na descida, quando vazavam fios de sangue de braços, pernas e, mesmo, dos rostos. Descobri, assim, a utilidade dos panos rudimentares que ficavam pendurados nas imensas caixas de armazenamento: limpar, com escassa higiene, as feridas resultantes da laranjeira enfim vazia, sem mais daqueles sóis a exibir. Entre as aleias, caixas enormes estavam previamente alinhadas por toda a parte. Não consigo avaliar o quanto, mas, segundo nossos monitores na empreitada, cada um desses baús comp...

Perdido em Israel - Trecho 5

Tantos anos depois daquela minha primeira e única incursão à Israel, olho para o espelho e tento descobrir se há crueldade no meu olhar, para avaliar o tamanho da nódoa que me manchou. Não choro por ela, tampouco dela me orgulho. Deve ter sido apenas por birra, mas nunca fui um bom candidato a sionista. Trabalhei, pela primeira vez na vida (é bom frisar) como um camelo, animal de desertos, capaz de esforçar-se sempre além da conta. Minha estreia ocorreu num domingo, primeiro dia da semana laboral do país. Todos os dias, depois de um café-da-manhã comunitário que ocorria literalmente no meio da noite inconclusa, levavam-nos e aos demais membros ou visitantes do kibutz, em tratores com carretas acopladas, às longínquas (vai ver que nem tanto, porque a memória é traiçoeira) plantações de laranja das terras arrendadas ou compradas daquela comunidade. As próprias laranjas eram brutalmente grandes e cismavam em jactar-se de seu tamanho, na copa de laranjeiras também gigantescas, mesmo se com...

Perdido em Israel - Trecho 4

O grupo que foi comigo para aquela nação nova, uma espécie de cisto entre árabes e outros povos que comungam de nossa mesma etnia (quase todos semitas, segundo consta), chamava a atenção pela heterogeneidade. Éramos baixos e altos, morenos, loiros ou ruivos, alguns tinham narizes aduncos, outros não. Muitos hirsutos e outros tantos glabros. Como explicar tantos traços genéticos distintos entre seres da mesma espécie, que, tradicionalmente, viveram isolados dos demais? Não é fato indesmentível que judeus só viviam com judeus, e que tampouco faziam proselitismo de sua fé e quase nunca aceitavam convertidos em suas hostes? Então por quê? Eu mesmo sou branco, alto e sempre tive o que por aqui chamam “cara de alemão”, como definiam os colegas de escola. Meu nariz não lembra o dos semitas e, se comparado aos sabras (os judeus já nascidos em Israel), morenos, baixos e devolvidos à cor de pele do deserto, devo lembrar um extraterrestre. Não foi preciso ir muito longe para concluir que, claro, ...

Perdido em Israel - Trecho 3

Porto Rico, Palestina ou Madagascar? Sei bem o que é genocídio. Sou um escapado daquele horror. Perdi grande parte de minha família em campos de extermínio. Hoje vejo, entristecido, que essa palavra já não tem significado. Qualquer cidadão a utiliza irresponsavelmente e, não entendo por que razão, gosta de proferi-la contra os próprios judeus, numa evidência de que o antissemitismo segue vivo e forte. É evidente falta de conhecimento sobre questão tão antiga e repetida. Terá sido por isso que vi tantos jovens beijando aquele chão duro e sujo? Seguidores do pentateuco (que é o velho testamento da Bíblia), eles ficaram extasiados com aquele momento de um reencontro com histórias ou lendas milenares . Não sei se beijariam, também, o solo de Madagascar ou de Porto Rico, entre outros territórios cogitados para abrigar a sonhada pátria dos Hebreus remanescentes - locais isolados que eles mesmos poderiam governar, ser governados – e, pela primeira vez durante séculos de assédio, criar sua pró...

Perdido em Israel - Trecho 2

...Eu era jovem demais para aceitar arroubos de paixão por qualquer lugar. Paixonites eram mais a minha praia: por elas, sim, eu entendia verter lágrimas e produzir poesias. Mas nem por elas eu beijaria um chão, tanto faz se sujo ou limpo. As mentiras que ouvimos. A segunda lembrança que guardo é a do terror que senti ao deixar o terminal e ver, ao redor, uma multidão de pessoas vestindo ghutras, aqueles lenços que identificam os povos árabes. Seria um novo conflito? Estaríamos sob ataque? Não, havia muitas verdades que eu desconhecia. Então – e até hoje – árabes de diversos grupos e judeus de inúmeras origens, convivem num mesmo território. No momento em que escrevo essas linhas, há 20% de muçulmanos vivendo legalmente na chamada terra prometida. Duzentos mil israelenses que seguem o Corão. Há um partido político que representa interesses dos árabes no Parlamento e, naqueles longínquos dias em que estive no país, tive a oportunidade de descobrir o tamanho da presença árabe em Israel. ...

Perdido em Israel - Trecho 1

Beijos no chão do aeroporto. Duas lembranças de meu desembarque em Israel, o primeiro e único, em 1969. Éramos cerca de setenta brasileiros enviados por seus pais num tempo em que praticar o sionismo não tinha os estigmas de hoje. O Brasil padecia de uma ditadura cruel e uma das opção oferecidas a descendentes de judeus era tentar começar vida nova no país para o qual estavam eternamente convidados, lugar árido e hostil, mas uma alternativa. De minha parte fui pela farra. A viagem, subsidiada por entidades que desejavam povoar a recém-nascida nação, incluía quinze dias de turismo pela Europa e sessenta de trabalho em algum kibutz, a alma socialista e igualitária adotada para a recolonização. Do turismo eu gostei. Confesso que, do trabalho repleto de normas dessas agro experiências idealistas, nem tanto. Voltando às lembranças, com destaque para a primeira. Estarrecido vi pelo menos dez participantes do grupo ajoelhando-se sobre o concreto do aeroporto de Lod para beijar o solo oleoso d...

Introdução

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Queridos leitores: escrevo agora o livro “Perdidos em Israel”, que é o relato de um correspondente de guerra há 54 e a 10 mil quilômetros distante dos eventos da guerra em Gaza. É uma experiência nova e espero que seus resultados sejam de seu gosto. Como funciona? Todos os dias publico aqui, no meu Instagram meu Facebook um trecho novo do livro, que tem lembranças, pensatas e, principalmente análises do dia a dia da guerra baseada em ampla leitura de jornais, sites e blogs independentes (ou não tanto). Sou jornalista, escritor, publicitário e tenho 50 anos de experiência como editor e diretor de revistas. Ouso comentar o que ocorre com uma visão geopolítica ampla. O livro está ficando, modestamente, muito bom. A vantagem é que você escapa dos “textões”,  lê um pouco a cada dia, e interage quando quiser.  Nesse blog novinho em folha você pode ler tudo o que publiquei até hoje, o texto do dia e  os próximos, que seguirão sendo postados sem falta. Investiguem o blog a fundo ...