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Mostrando postagens de dezembro, 2023

Perdido em Israel - Trecho 43

Não creio que o faria de verdade, mas essa foi sua forma de manifestar a indignação de todos os que se sentiram feridos com o renascimento do nazismo, seja lá que nome novo ele tenha. Confesso que eu também estou tomado de indignação, nunca pelo conflito, mas por ser agredido genericamente, como se estivesse de arma em punho matando gente inocente para alcançar a milícia, apenas uma entre tantas, que se oculta nos porões de Gaza, nos hospitais e nas escolas, utilizando palestinos inocentes como brasões. Vivo na paz possível da casa que conquistei com meu trabalho. Ela tem um jardim florido, uma imensa jaqueira ao lado de, ao menos, cinco araucárias enormes, árvores de pau-ferro, imensas paineiras e jabuticabeiras diversas, todas elas derivadas de uma mãe centenária, que ainda produz seus frutos para consumo imediato da passarada que nos oferece amanheceres e tardes bucólicos. Tem árvores frutíferas diversas e produtivas, inclusive uma laranjeira, muito menor do que as que produziram fe...

Perdido em Israel - Trecho 42

Meu general (é assim que o chamo, carinhosamente) é, por todas as razões, inimigo dos inimigos do lugar onde foi feliz – ao contrário do que fui em 1969. Suponho que, assim como ele, o sentimento sionista voltou a aflorar em milhares de pessoas da mesma etnia, entre eles ateus ou pouco praticantes do judaísmo. Com a introdução do termo “genocidas” para designar justamente os que sobreviveram ao Holocausto ou deles descendem, um amigo, judeu por tradição, como eu, manifestou), a seguinte frase: - Israel deveria dar cabo da Faixa de Gaza com força bruta, uma bomba atômica, talvez. Nesse caso, não seriamos chamados de genocidas todos os dias, mas apenas uma vez. A frase é hedionda, mas tem uma lógica intrínseca. Os sentimentos, como se vê, estão exacerbados e sem qualquer “razão”, porque ela é a segunda vítima das guerras, como já afirmei. Meu filho, que fez seu bar-mitzvá há quase trinta anos e nunca foi à Israel, perdeu as estribeiras com diversos amigos que, irresponsavelmente, postara...

Perdido em Israel - Trecho 41

A segunda vítima Já se sabe que a primeira vítima de cada guerra é a verdade. A segunda é a razão. Quando povos se matam, não importa quais sejam e o tamanho que possuam, a razão some. Não apenas a razão como sinônimo de inteligência, mas a razão que significa integridade ética, moral e social. As nações envolvidas e hoje, também, a opinião pública mundial incitada pelas redes sociais, tomam seus lados, agem sectariamente, como torcidas organizadas que aplaudem a cizânia, matam e morrem pela cor de suas agremiações. Até mesmo os que se pretendem isentos e pontificam a partir de suas torres de sabedoria, ficam perdidos. Os fatos se sucedem, as imagens que vêm de Israel e de Gaza mudam opiniões, pioram, melhoram, açulam ou amenizam o texto dos analistas. Em busca de uma solução humanitária já perdida nesse conflito, perdem-se, sobretudo, ao atribuir responsabilidades e injuriar os povos querelantes sem qualquer freio. O generalismo (judeus são isso, palestinos são aquilo etc.) mostra que...

Perdido em Israel - Trecho 40

  A nunca negada utilização de uma única bomba atômica (Israel tem algumas delas)há de resultar em guerra de dimensões daquela que praticamente ceifou a raça semita e odiada. Nesse caso, dificilmente a terra dos judeus continuará a existir, exceto se os países novamente envergonhados das Nações Unidas instalarem os sobreviventes em lugares pouco povoados como a península de Kamchatka, um território vulcânico de pouco interesse para a Rússia ou em alguma área isolada no norte do Canadá, na província de Nanavut, cujos raros habitantes são ursos polares e famintos. Ursos jamais seriam antissemitas, mas não se importam em devorar seres humanos, sejam eles muçulmanos, judeus, cristãos ou budistas. Confesso que gosto muito destes seres peludos, democráticos predadores. Mas a questão torna-se ainda pior com o acirramento do antissemitismo em todo o mundo, acompanhado por novas lideranças xenófobas instaladas em países poderosos. Só nos Estados Unidos, país povoado por múltiplas minorias, ...

Perdido em Israel - Trecho 39

  A Síria, cuja dinastia de Al-Hassad, jamais tolerou a proximidade com os judeus e, para tanto, alimenta-se de recursos e armas de origem russa, é inimiga declarada e hostil aos israelenses, especialmente porque, em 1967, os judeus tiraram-lhe a vantagem estratégica de dominar o topo das colinas de Golã. O Egito, formidável inimigo que a primeira-ministra Golda Meir e o presidente Anwar Sadat tornaram países irmãos para benefício mútuo hoje faz negócios com Israel (antes chamado por Gamal Abdel Nasser, tirano falecido, apenas de Entidade Sionista), compartilha turistas e divide prosperidade do jeito possível. A Jordânia, que fica a leste do território onde trabalhei e deixei o sangue de minhas feridas, não é fanática ou militarmente poderosa. Há décadas, oficial e extraoficialmente, essas nações se entendem, comerciam bens e serviços e vivem em relativa paz. Também vítima do despotismo de seus vizinhos e igualmente desprovida de petróleo, a dinastia hachemita que governa o país é ...

Perdido em Israel - Trecho 38

Como jornalista, visitei Dubai e Abu Dhabi em pelo menos três ocasiões. Em cada ocasião, as cidades estavam mais louváveis do que nas viagens anteriores. Os palácios brotavam em todos os bairros, surgiram construções imponentes (entre eles o Burj Califa, maior e mais alto edifício do planeta), ilhas e arquipélagos artificiais adquiridos, lote a lote, por investidores europeus e asiáticos. Lembro-me que, em uma das reportagens que escrevi, comparei Dubai a Babilônia, ao Cairo e a outros lugares monumentais erguidos ao longo de milênios para perenizar os feitos de povos dominantes e prósperos. Alguns acham Dubai e Abu Dhabi locais exageradamente “cafonas”, por sua mescla interminável de estilos e por sua vocação para ostentar tesouros quase agressivos pelo tamanho da empáfia e pela pobreza sem limites de iemenitas, paquistaneses, barenitas e e outras nacionalidades menos privilegiadas que vivem acampados em condições mais que miseráveis no calor inclemente do deserto local. São centenas ...

Perdido em Israel - Trecho 37

  Não contei, ainda, mas no kibutz Bahan, o tal do cemitério de bolas, havia um bunker de dimensão adequada para suas poucas centenas de habitantes. Duas ou três vezes, se me lembro, sirenes nos obrigaram a correr esses refúgios, fétidos por natureza. Alarmes falsos, felizmente. Que, há mais de setenta anos tocam automaticamente no interior da alma dos próprios israelenses, sempre assustados e com um sentido aguçado de que é preciso celebrar cada momento, como celebravam as vítimas da festa rave, dezenas de milhares delas vivendo cada minuto como se fosse o último. Foi mesmo, para muitos deles. A questão, agora, é o porque temo pelo fim de Israel. Antes cercado de países de população empobrecida e parcamente armados, os ditos inimigos eram presa fácil para o então poderoso país (dito invasor por quem se limita a ler manchetes), equipado, com a poderosa ajuda financeira de judeus espalhados pelo planeta e pelo seu parceiro de primeira hora, os mui odiados norte-americanos, para quem...

Perdido em Israel - Trecho 36

As monstruosas acusações vieram a cavalo. Se ninguém, com um mínimo de consciência, aceitasse que Israel fosse retaliar após o mega ataque que sofreu sem aviso prévio, incluindo a captura de reféns que qualquer estado autônomo faria de tudo para repatriar, não haveria um único homem probo no planeta. Como dezenas de presidentes (incluindo nosso pacificador Lula), decidiram meter o bedelho indicando a solução de “dois povos e dois estados”, todos eles revelaram pouco conhecimento político e histórico – e, claro, suas frases torpes ecoaram entre seus liderados. Dois estados? O Hamas e seus grupos parceiros não toleram e nem negociam essa ideia, não admitem líderes (fuzilam-nos, aliás) que se disponham a negociar a hipótese, a meu ver fabulosa, de uma conversa produtiva que resulte em paz. Sua própria legislação, porém, prevê a extinção dos judeus de Israel. Aiatolás hebreus Em contrapartida, os terroristas de Israel (que é como defino os ultra-ortodoxos sempre prontos para colonizar área...

Perdido em Israel - Trecho 35

Incomoda, porém, o uso irresponsável da palavra genocídio. Com a mesma paixão que nutri por Israel há 54 anos (nenhuma, como se viu), hoje uma nação de líderes fracos e ideias repulsivas, isso eu não aceito. Que os homens cometem genocídios desde priscas era, todos sabemos. Foram-se povos inteiros na colonização espanhola da América do Sul e Central. As populações indígenas e estrangeiras de diversas nações (inclusive o Brasil) também acabaram dizimadas e, com processos distintos, houve genocídios na África, na Ásia e na União Soviética. Genocídio significa sistematizar a matança de humanos, e muitos povos podem chorar suas perdas até o fim dos tempos. Os sobreviventes dessa selvageria sabem, sem dúvida, o tamanho da dor e das consequências que carregam. Os judeus, por tudo o que já foi dito e confirmado pertencem a uma etnia que pode usar os termos Holocausto e Genocídio com a devida dignidade e respeito - e em maiúsculas. Acusá-los de ser praticantes daquilo que quase os eliminou da ...

Perdido em Israel - Trecho 34

Em qualquer guerra, a primeira vítima é a verdade (ora atribuída a um senador norte-americano, ora a um visconde inglês e há mesmo quem creia ter sido proferida por Ésquilo, o dramaturgo grego que criou a tragédia, mas afinal celebrizada no livro A Primeira Vítima, do repórter e escritor anglo-australiano Philip Knightley. Se em séculos anteriores, muito antes do boom de comunicação que nos assola hoje em dia (sim, assola é a palavra adequada em tempo de notícias mal-feitas, mal-editadas e frequentemente falsas), as verdades sumiam no ar ao primeiro tiro, manipuladas pelos próprios países beligerantes, hoje a mentira grassa com a velocidade de um rastilho de pólvora. Os países que lutam, seus afetos, desafetos e ineptos de ocasião. Quando o povo judeu está envolvido, então, renasce o velho germe do antissemitismo. Nazistas de todas as nacionalidades saem dos porões em que estavam ocultos para lamentar que Hitler não tenha tido tempo de concluir o extermínio programado, criando, com iss...

Perdido em Israel - Trecho 33

“Sou judeu e, portanto, estou absolvido!”, acreditavam os jovens delinquentes daquele grupelho, com a alma expiada em seus muitos dias de perdão e, principalmente, em tantos séculos de perseguição. Apenas algumas horas mais tarde, grande parte daquela súcia de mentirosos, saqueadores e vândalos iriam ajoelhar-se na pista do aeroporto de Lod, beijar o chão e cumprir a missão sagrada de voltar às suas origens étnicas. O trambiqueiro dos cartazes de Pelé, com o bolso carregado do dinheiro de incautos, era um deles, com o bolso forrado de dinheiro pouco honesto. Aprendi, aos poucos, que a criação de um país qualquer, desde que plural e democrático, não tem nada em comum com a religião que sua população adota. (ou tem quando a fé está no comando). Com apenas 21 anos de idade, Israel tinha o que todos os estados têm: ladrões, prostitutas, cafetões e outros profissionais do tipo misturados com gente melhor estabelecida, mais trabalhadora e, naquele tempo, mais idealista. O futuro mostrou que ...

Perdido em Israel - Trecho 32

Dias depois, na Grécia, alojados em um então moderno hotel central, entendi que os sucessivos atos de delinquência talvez não tivessem nada em comum com a etnia dos viajantes. Nunca têm. Éramos, de fato, um grupo de jovens assolados pela virulência da testosterona que acomete jovens na transição para a vida adulta e, a meu ver, sofríamos (os efeitos de grupo que desencadeavam o tal do “crime de manada”. As portas de vidro do hotel em Atenas, vandalizadas pela nossa “turba” que as deixou em cacos, foram outras vítimas daquela situação. Em Roma, nosso grupo de pseudo sionistas hostilizou abertamente um idoso que entrou no ônibus estacionado na frente da Catedral de São Pedro para vender objetos católicos. Mais tarde, no mesmo dia (uma sexta-feira), fomos à Grande Sinagoga de Roma localizada no rione (distrito) San’Angelo, em frente ao rio Tibre. Era shabat e talvez expiássemos parte dos pecados cometidos naquela jornada sem nexo. Ocupávamos a terceira fila da plateia quando o velho ambul...

Perdido em Israel - Trecho 31

Piorou muito essa percepção nos dias subsequentes. Nossa passagem pela Holanda foi tão criminosa (isso mesmo: facínora) que quase levou o grupo inteiro (setenta pessoas, lembram-se?) à cadeia de Amsterdã. Pela manhã, um ônibus levou a trupe completa para a pequena cidade de Volendam, um presépio de casinhas coloridas alinhadas em frente ao Marketmeer, que é um avanço do oceano nas terras baixas daquele país. Nunca estive lá outra vez, mas presumo que ainda é um pequeno balneário de verão, visitado o ano inteiro por turistas em busca de fotos pitorescas e lembranças que eram vendidas em cada uma das casinhas típicas. Pois a malta de jovens foi impiedosa. Sempre em grupos pequenos, entrou em cada uma das lojinhas (cujos proprietários viviam pacificamente no piso superior) e cometeu um assalto de proporções notáveis. Vi muitos dos companheiros de excursão carregando chocolates, pratinhos, miniaturas de moinho e tamancos típicos daquele país. Mas não percebi que o estrago era muito maior. ...

Perdido em Israel - Trecho 30

Eis que o fulano, sem qualquer tipo de remorso, autografou, na caligrafia simples de Pelé (e com as próprias mãos) cada um dos cartazes. Acho que estivemos por mais ou menos dias, em cerca de dez países europeus, recebendo a recompensa adiantada pelo trabalho que iríamos executar. Eu o vi praticando seu comércio ilegal por toda a parte. Melífluo, apresentava-se na portaria dos hotéis, lojas e restaurantes com o pôster sob o paletó ou o traje pesado que usávamos naquele inverno. Dizia à vítima ser morador da cidade onde Pelé vivia (o que, na verdade, não era nenhuma mentira) e mostrava o cartaz que “eu mesmo ganhei do Rei”. Quase sempre seu golpe funcionava. Ansiosos por uma lembrança autografada do ídolo mundial, os interlocutores perguntavam se ele a venderia, no que eram prontamente rejeitados. “De jeito nenhum! Essa é a minha joia pessoal!, -indignava-se, aumentando, portanto, a cobiça dos interessados em possuir um cartaz autografado por uma celebridade mundial. Ao fim e ao cabo, m...

Perdido em Israel - Trecho 29

Descobertas na Europa Hoje entendo que pertencer a um povo, qualquer povo, não significa ser melhor ou pior. Algumas pessoas são boas, outras ruins e inescrupulosas, não importa que origem tenham. Foi antes mesmo de meu único desembarque em Israel (um ano e meio após o citado Bar Mitzvá) que a ficha caiu. Nos quinze dias em que passeamos pela Europa antes de chegar à dita terra prometida, percebi o quão heterogêneos eram os judeus – talvez por maior ou menor influência dos vilões que carregavam em seus dnas. Não me lembro dos nomes, mas as atitudes de pessoas naquela viagem sionista marcaram-me profundamente até hoje. É provável que, em razão de tudo o que aconteceu, não tenho, até hoje (ou até recentemente) a menor vontade de rever Israel. Sou jornalista, trabalhei por muitos anos com revistas de viagem dirigindo revistas da área e produzindo reportagens apaixonadas (tenho um livro com esse nome) em nada menos de 88 países. Para a maioria deles viajei convidado pelos governos locais (...

Perdido em Israel - Trecho 28

Último interlúdio. Está mais curto, porque encerra uma fase e, amanhã, outra vai se iniciar. Peço aos que me seguem que fiquem atentos. O livro, de título provisório Perdido em Israel, em breve poderá ser acompanhado, também. em meu novo blog. Quem perdeu algum dos trechos, poderá recuperá-lo por lá. Obrigado pelo carinho geral. O mundo de um povo a que eu pertencia. O dos indígenas, se eu fosse um deles; o dos pretos, se eu fosse um deles; o dos orientais, se eu fosse um deles. Hoje, vocês pertencem a todos esses povos, porque o mundo fez com que nos apaixonássemos uns pelos outros e tivéssemos filhos de múltiplas origens, graças a Deus (Deus, quem é Deus?). Se vocês tiverem vontade de manter suas origens – todas elas – pensem nisso que eu escrevi. Se não, não pega nada. Só quero mesmo que todos sejam felizes – e acredito, de verdade -, que o conhecimento e a reverência ao passado fazem parte desse caminho. Um beijo de seu Grande Mestre, que é apenas um elo dessa grande corrente que f...

Perdido em Israel - Trecho 27

Sétimo do  interlúdio. Pois é, naquele dia de março de 1968, fui informado de que pertencia a alguém ou alguma coisa. E isso é tão evidente quanto saber que um herói da Marvel foi criado pela Marvel e um da Disney foi criado pela Disney. Houve um almoço chique, com centenas de judeus poloneses, na casa dos novos pais da vovó Krystyna, que, portanto, viraram meus avós. Ganhei mais presentes, mais beijos melecados de batom e mais Mazal Tóvs. Todos me olhavam – de verdade, eu juro – como se eu tivesse acabado de nascer. De certa forma, foi isso mesmo o que aconteceu – o que só vim a saber depois que tive meus filhos e meus netos (que são vocês), frutos, em parte, dessa mesma macieira desconhecida. Nunca me tornei religioso, mas ia, algumas vezes, à sinagoga, para honrar meus pais e antepassados, como vocês também já fizeram na minha companhia, na da Iéié e, que saudades, na do nosso papinha. O almoço estava maravilhoso, como tudo o que cozinhava a Clara, a mão-de-ouro de minha avó Ant...

Perdido em Israel - Trecho 26

Sexto do interlúdio. Nem sei se isso importa. Se não houvesse mais judeus no mundo, que diferença isso faria? Se nenhum de vocês quiser dar continuidade a essa história milenar, o que vai acontecer? Provavelmente nada. Não somos religiosos, eu mesmo – como já disse – até duvido de Deus, como outros de seus parentes não judeus e igualmente valiosos. Mas, que diabos? De algum lugar viemos! As maçãs vêm das macieiras, os umbus dos umbuzeiros, os animais, todos eles, também têm suas espécies. Ah, vovô: mas você é alemão! Não: sou brasileiro, meu pai e meus avós nasceram na Alemanha, mas tiveram de fugir de lá, para escapar dos horríveis campos de extermínio que ali foram criados para aniquilar judeus de todas as espécies. Viviam em Berlim e foram logo segregados. Ah: vovô: você é polonês! Eu não, sou brasileiro. Minha avó Felícia, mãe da vovó Krystyna, não conseguiu fugir a tempo e morreu num lugar como esses que mencionei. A vovó Antonina e o vovô Alfredo, mais previdentes ou assustados, ...

Perdido em Israel - Trecho 25

Q uinto do interlúdio. Ganhei canetas-tinteiro (eram chiques naquele tempo), relógios bonitos (já falei que ninguém tinha celular para ver as horas), agendas com capas de couro – nas quais anotei, mais tarde, os resultados dos campeonatos de botão que jogava comigo mesmo – menorás, estrelas de Davi e outros símbolos do judaísmo. Dos melhores nunca me esqueço: meus pais me deram uma televisão “portátil”. Parecia um computador velho, com uma bunda grande onde ficava o tubo de transmissão; era, acho, vinho e bege, mas o mais importante é que se podia levá-la de um lugar para o outro com as mãos, segurando uma pequena alça (acho que, na verdade, nunca levei a tal tevê para lugar algum). Não funcionava muito bem, mas isso era o de menos: para mim, ver aquela tela mágica com algumas imagens retorcidas (às vezes,não) era o mesmo que andar num foguete espacial. De minha avó Antonina, esposa do querido vovô Alfredo – que morreu naquele mesmo ano – , ganhei um presente especial, que, de certa fo...

Perdido em Israel - Trecho 24

Q uarto do interlúdio. Confesso que demorei muito para entender as razões para tanto sacrifício. Nem sei se as compreendo até hoje, embora ache que a experiência (que vocês chamam carinhosamente de velhice) tenha me dado elementos para aprender muito mais. Naquele dia de março de 1968, porém, eu me senti no meio do mundo. Todos, inclusive gente que eu nem conhecia, me abraçavam como se eu tivesse realizado um feito extraordinário, como subir a montanha mais alta da Terra ou atravessar o oceano em um barco a remo. De alguma forma, mais para eles do que para mim, aqueles momentos desafinados em frente a Torá representavam alguma coisa muito importante. Não preciso falar dos mais próximos: minha mãe, sempre dura e doce (do jeito que se tornam os que viveram em guetos, campos de concentração e sobreviveram), deixava que raras lágrimas escapassem de seus olhos; o vovô lindinho, que tinha o estranho nome de Sven, chorão que nem ele só, parecia uma fonte jorrando água salgada. Meus avós que v...

Perdido em Israel - Trecho 23

Terceiro do interlúdio. Era molezinha: já sabíamos o trecho de cor e salteado, assim como conhecemos os hinos de nossos times de futebol. Então íamos mexendo com o tal dedo de ouro sem nenhum critério e dizíamos o que devíamos dizer: a decoreba do trecho em hebraico, que liamos com a voz desafinada dos que têm treze anos, servia para que o rabino abrisse a Torá, que é uma espécie de rolo de pergaminho cheio de palavras incompreensíveis e fizéssemos o bar-mitzvá, em apenas dez ou quinze minutos. Era molezinha: já sabíamos o trecho de cor e salteado, assim como conhecemos os hinos de nossos times de futebol. Então íamos mexendo com o tal dedo de ouro sem nenhum critério e dizíamos o que devíamos dizer: a decoreba do trecho em hebraico, que liamos com a voz desafinada dos que têm treze anos, servia para que o rabino abrisse a Torá, que é uma espécie de rolo de pergaminho cheio de palavras incompreensíveis e fizéssemos o bar-mitzvá, em apenas dez ou quinze minutos.   Quando acabávamos...

Perdido em Israel - Trecho 22

Segundo do interlúdio de meu livro ao vivo. As pessoas, eu acho, eram tão boas e tão ruins como as de hoje – ninguém muda o temperamento humano, pelo menos por enquanto. Brincávamos em casa, na rua e, no meu caso, num terreno baldio onde tínhamos um campinho de futebol de grandes histórias. Posso contá-las quando vocês quiserem. O dia era importante para a minha família: o dia de meu bar-mitzvá, que é quando as crianças de origem judaica se tornam oficialmente adultos. Também era importante para mim porque eu iria ganhar muitos presentes. Nem sabia bem o por quê, mas era tradição: na passagem para a maioridade religiosa, os meninos judeus (e as meninas judias), mesmo os quase nada religiosos, como eu, enchiam-se de presentes para abrir, com conteúdo, em geral, muito mais valioso e amplo do que os que costumávamos ganhar nos aniversários. Era isso o que me animava. Também o fato de que eu estava pondo fim a quase dois anos muito chatos em que tive de aprender rudimentos do hebraico (até...

Perdido em Israel - Trecho 21

Primeiro do interlúdio. Carta aos meus pequenos aprendizes. Foi em algum dia de março de 1968. Um ano em que o Santos, como sempre, foi campeão, vivíamos uma ditadura cruel, não podíamos eleger presidentes, governadores, prefeitos e o mundo mudou muito com movimentos juvenis na França e na então Tchecoslováquia. É importante dizer o ano, porque o mundo era muito diferente naquela época. Tínhamos telefones de cinco dígitos (3-3403 era o de minha avó Antonina) e ninguém usava a palavra dígitos, porque ela apareceu na vida da gente muito mais tarde. A televisão era, quase sempre, um armário com portas, com tela preto e branco e sem controle remoto. A imagem tinha chuviscos e vivíamos tendo de mudar a posição de duas barrinhas de ferro que serviam como antenas – e, acreditem, tinham Bom Bril nas pontas para melhorar a captação. O mundo era menos complexo: não havia celulares, videogames e – vejam só – nem uma ideia do que seria o Facebook e o TikTok. Alguns, como eu, gostávamos de ler, o q...

Perdido em Israel - Trecho 20

As negociações ocorriam nos souqhs das cidades que visitávamos, onde, é claro, eu sempre acabava pagando mais que o dobro do valor real – ainda que deles saísse com efêmera sensação de sucesso. Desenvolvi, é claro, algumas amizades com brasileiros que viviam a mesma situação. Nada muito profundo, diga-se, por culpa de minha incapacidade, quase infantil, de ouvir e aprender. De todos, o que mais me lembro é o psicólogo, professor (e hoje filósofo assumido) Ari Rehfeld, filho de uma autoridade intelectual do meio acadêmico brasileiro, especialista em estudos e reflexões sobre o judaísmo. Algumas vezes fomos juntos, ao entardecer, visitar parentes dele que já estavam instalados, com sólidos pilares, no país em construção. Foram ocasiões familiares das quais sentia falta, um pouco de cor local, pintando a aridez do cobiçado deserto de então. Hoje, me dizem, um deserto verdejante e próspero graças ao milagre da irrigação de gotejamento, tecnologia desenvolvida em minúcia pelos isralenses pe...

Perdido em Israel - Trecho 19

Fiz outros, muitos outros, trabalhos nos meses em que vivi no kibutz. Todos eles produziriam histórias divertidas e tristes desse relato. Só vou citar mais uma: fui encaminhado, em certa ocasião, para nova empreitada solitária que me soou agradável. Tornou-se meu expediente diário juntar-se às vacas no curral e, com um pincel, empastado de tinta cinza (acredito que anticorrosiva) passar os dias pintando os canos redondos que serviam de cercas para controlar o gado. Mas sempre há contras, qualquer que seja a tarefa, principalmente se você não estiver imbuído do idealismo para construir um país. Naquele caso, as botas de trabalho eram inadequadas. Eu usava botinas de couro – e nunca me deram botas de cano longo, sob a alegação de que não compareci no dia e no local adequado em que elas foram distribuídas ao meu grupo. Deve ser realidade indiscutível, porque nada é polêmico nas ordens expressas de uma comunidade daquela espécie. Não sei, nunca soube, porque não estive no lugar certo na ho...